Blog do Gandavo

Blog com entrevistas, bate-papos e depoimentos mediados pelo Contador de Histórias Laerte Vargas (Brasil).

As atrocidades do Barão Gilles de Rais — 26 de setembro de 2023

As atrocidades do Barão Gilles de Rais

Descubra quem foi Gilles de Rais: conhecido como o ‘barão comedor de criancinhas’
Publicado em 24/09/2023

Canal de Ciências Criminais

Imagem: stravaganza

Quase seis séculos depois, a sinistra história do barão francês Gilles de Rais ainda causa temor e fascínio. Este nobre Bretão, que se tornou famoso por suas vitórias militares durante a Guerra dos Cem Anos, tem um lado obscuro que às vezes é ignorado em face de suas conquistas militares: ele era um assassino de crianças e canibal.
Em 1432, na pequena aldeia de Machecoul, na Bretanha, os moradores viviam aterrorizados. Crianças desapareciam misteriosamente e muitos suspeitavam do próprio barão Gilles de Rais, apesar de ser considerado um herói nacional pela população. A desconfiança crescia à medida que o barão se isolava cada vez mais em seu castelo após a trágica morte de sua aliada e amiga, a proeminente santa e heroína nacional Joana D’Arc.
O que acontecia no castelo de Gilles de Rais?
Logo se revelou que os temores dos céticos sobre Gilles de Rais eram verdadeiros. Atraídas por promessas de presentes, as crianças eram levadas ao castelo do barão onde eram submetidas a uma série de horrores. Após serem alimentados com um jantar farto, eram levados para uma sala secreta, onde sofriam abusos sexuais e eram brutalmente assassinados. Seus corpos eram então esquartejados, e as partes consumidas por Gilles de Rais e seus confidentes, numa horripilante refeição de natureza canibal.

O silêncio foi quebrado?
Apesar das dezenas de mortes, por muito tempo a reputação nobre do barão sufocou qualquer acusação contra ele. No entanto, após um conflito com o clero francês em 1440, a macabra verdade foi revelada. Quando foi convocado para responder ao sequestro de um padre, a questão do desaparecimento das crianças foi levantada. Mesmo após ser condenado à tortura, Gilles de Rais acabou confessando voluntariamente suas atrocidades. Ele e alguns de seus comparsas foram enforcados e queimados, enquanto outros conseguiram escapar.
Houve um legado nos contos populares?
O sinistro legado de Gilles de Rais perdura até hoje. Ele é frequentemente associado à figura do Barba-Azul, o famoso personagem dos contos de Perrault que matava suas esposas. Além disso, na era moderna, a história desse barão assassino e canibal continua a ser explorada na cultura pop, como nos videogames da série Castlevania. Não há dúvida de que, mesmo após séculos, a história sombria de Gilles de Rais continua a aterrorizar e fascinar as pessoas ao redor do mundo.

A moralidade nas fábulas — 10 de fevereiro de 2021

A moralidade nas fábulas

Fábula: Narração que transmite lição moral – Bruna Eckel

Fábula é uma composição narrativa em que os personagens são animais que apresentam características humana, principalmente a fala. A fábula tem caráter educativo e ao final traz um ensinamento, fazendo analogia com o cotidiano. A mensagem educativa é chamada moral da história.

Bastante utilizada na literatura infantil, a fábula busca passar, através de histórias vivenciadas pelos personagens irracionais, ensinamentos para os seres humanos. Esse tipo de texto geralmente apresenta uma narrativa curta e é escrita em prosa ou em poema épico. Ela faz parte do gênero textual que se encaixa nos tipos de textos narrativos, apresentando os elementos estruturais da narração como: personagens, narrador, tempo, espaço e enredo.

Em uma fábula, os personagens são chamados de personagens tipo. Isso ocorre porque eles representam um modo de ser de um conjunto de pessoas e não a cada um individualmente. Assim, os animais simbolizam aspectos dos seres humanos, como por exemplo, a raposa representa a astúcia, o leão representa a força.

Características da fábula

Por se tratar de uma tradição oral, uma mesma fábula pode ganhar roupagem diferente em diferentes épocas e regiões. As fábulas são histórias que buscam construir explicações sobre as manifestações da natureza, as relações entre as pessoas, seus defeitos, suas paixões, seus comportamentos, suas virtudes e as relações entre a humanidade e a natureza.

Algumas características dessa vertente de gêneros textuais são:

  1. Apresenta uma narrativa alegórica em prosa ou em poema épico;
  2. Seus personagens são antropomórficas, ou seja, animais com características ou comportamentos humanos;
  3. Através do comportamento dos animais, representa virtudes, qualidades e defeitos dos seres humanos;
  4. Por se tratar de um gênero transmitido oralmente, as fábulas costumam ter muitas versões;
  5. Presença de “personagens tipo”, ou seja, personagens que representam o comportamento humano de forma coletiva e não de maneira individual;
  6. Traz uma lição moral no final da história.

Origem da fábula

Originada no Oriente, a fábula foi tradição entre os assírios, sumérios e babilônios. Por volta de 1500 a.C. os sumérios já utilizavam narrativas com animais que possuíam características humanas, além de trazer uma lição moral em suas mensagens.

Apesar de existir desde as primeiras civilizações, a fábula foi desenvolvida na Grécia Antiga, onde foi cultivada por Esopo, Hesíodo e Arquíloco. Nessa época, onde a liberdade de expressão era limitada. Esse tipo de narrativa foi utilizada para se opor à opressão, para criticar usos, costumes, governos.

Os autores usavam animais como personagens de suas histórias para escapar da repressão que poderia haver por parte de quem fosse criticado. Assim, a fábula servia como um código para que as críticas fossem feitas de maneira subjetiva.

Ainda pertencente ao gênero oral, as fábulas de Esopo são repletas de mensagens que apresentam contraposição entre mais fracos e mais fortes, nas quais na maioria das vezes os mais os mais fracos vencem os mais fortes utilizando a astúcia.

Por volta do século I a.C., o romano Fedro aperfeiçoou a fábula dando um toque estilístico e inserindo-a. Mais tarde, aproximadamente no século XVI, Leonardo da Vinci as reinventou, no entanto, seus textos não ganharam repercussão fora da Itália.

Por volta do século XVII a fábula foi recriada. O francês La Fontaine reescreveu e propagou as fábulas de Esopo, atribuindo a elas uso educativo. Além disso, Fontaine caracterizou personagens de acordo com sua aparência. Algumas das composições mais conhecidas de todos os tempos são: a cigarra e a formiga, a raposa e as uvas, e a lebre e a tartaruga.

A fábula possui um caráter moral e é utilizada com fins educativos. Ao longo dos anos, a moral desses textos chegou a se transformar em provérbios que pregam ensinamentos sobre alguns aspectos da vida cotidiana.

Conheça a fábula O leão e o rato. Ela é uma das produções atribuídas a Esopo que foi recriada por Jean La Fontaine.

“O Leão e o Rato

Jean de La Fontaine

Certo dia, estava um Leão a dormir a sesta quando um ratinho começou a correr por cima dele. O Leão acordou, pôs-lhe a pata em cima, abriu a bocarra e preparou-se para o engolir.

– Perdoa-me! – gritou o ratinho – Perdoa-me desta vez e eu nunca o esquecerei. Quem sabe se um dia não precisarás de mim?

O Leão ficou tão divertido com esta ideia que levantou a pata e o deixou partir.

Dias depois o Leão caiu numa armadilha. Como os caçadores o queriam oferecer vivo ao Rei, amarraram-no a uma árvore e partiram à procura de um meio para o transportarem.

Nisto, apareceu o ratinho. Vendo a triste situação em que o Leão se encontrava, roeu as cordas que o prendiam.

E foi assim que um ratinho pequenino salvou o Rei dos Animais.

Moral da história: Não devemos subestimar os outros.”

Autores de fábulas

Os fabulistas mais famosos são Esopo, Fedro e La Fontaine, que reescreveu fábulas de Esopo. Ele criou uma obra intitulada “Fábulas”, dividida em 12 livros, no qual usou uma linguagem que possibilitou analisar a alma e a natureza humana.

Escritas em versos livres, as fábulas de La Fontaine foram publicadas entre 1668 e 1694. Elas foram usadas para criticar de forma lúcida e satírica a sociedade do final do século XVII.

A maior representante do gênero no Brasil foi o escritor Monteiro Lobato. Ele escreveu fábulas como a coruja e a águia, o cavalo e o burro, o corvo e o pavão, além de também reescrever fábulas de Esopo.

A fábula na literatura infantil

A fábula é um gênero narrativo bastante utilizado na literatura infantil. Por se tratar um narrativa didática, elas são passadas por pais, por professores, estão em livros, em peças de teatro, em filmes, entre outros. Além do caráter didático-pedagógico, esse tipo de texto é utilizado para disseminar valores essenciais às relações sociais, abordando conflitos da vida dos seres humanos em sociedade de maneira lúdica.

VON SCHÖNWERTH, O FOLCLORISTA QUE CAIU NO ESQUECIMENTO — 5 de janeiro de 2021

VON SCHÖNWERTH, O FOLCLORISTA QUE CAIU NO ESQUECIMENTO

Esqueça as historinhas açucaradas dos irmãos Grimm. A essência dos contos de fadas medievais foi coletada por um burocrata alemão

PAULA TEBYRIÇÁ, DE FRANKFURT PUBLICADO EM 03/01/2021, ÀS 10H00

O escritor russo León Tolstói escreveu que para ser universal era preciso saber cantar sua aldeia. Durante toda a vida, Franz Xaver von Schönwerth fez isso em seu tempo livre.

Cabelo Rei Dourado
 Ilustração: Barbara Stefan (The Guardian)

O resultado? Um calhamaço de 30 mil páginas manuscritas, que reúne anotações sobre a vida cotidiana da região de Oberpfalz, no sudeste da Alemanha, perto da atual República Tcheca, onde nasceu. Além de espetaculares 500 contos de fadas (alguns conhecidos, mas em versões diferentes, outros totalmente inéditos).

O trabalho de Von Schönwerth, considerado um dos maiores folcloristas da Alemanha, só começou a ser resgatado recentemente. “O legado dele é uma fonte sem igual. Ele nos permite uma visão única na vida da Alemanha no meio do século 19”, diz Manuel Trummer, especialista em Von Schönwerth. “A quantidade e a densidade dos manuscritos são únicos e apresentam uma universalidade que os fazem importantes não apenas para a Alemanha.”

O modus operandi do folclorista era até singelo. Enquanto estava em Munique, onde viveu a maior parte do tempo por causa de suas obrigações na corte de Maximiliano 2º, de quem foi secretário-geral e conselheiro, convidava pessoas originárias da Oberpfalz para um café e escutava suas histórias.

Essas pessoas geralmente não tinham altos cargos ou riqueza. Pelo contrário, eram da classe mais baixa. Ele também desenvolveu um questionário, que sempre repetia para seus entrevistados.

Em 1860 e 1861, passou temporadas em Oberpfalz fazendo o trabalho de pesquisa no local – conversando com pessoas, transcrevendo o que lhe era contado, fazendo perguntas sobre diversos temas.

Em seus relatos, há uma visão direta, metódica e quase sem interferência sobre o trabalho, a comida, as roupas, os passatempos, os ditados, as histórias e os contos de fadas que andavam de boca em boca na população de sua região.

Em 1857, publicou o primeiro volume da série Aus der Oberpfalz – Sitten und Sagen (De Oberpfalz – Maneiras e Histórias). Em 1858 e 1859, publicou o segundo e o terceiro volume da série, obras-primas da pesquisa folclórica.

Apesar de grandes elogios do rei Maximiliano 2º e até dos irmãos Grimm, os livros foram um retumbante fracasso de vendas. 

Von Schönwerth continuou pesquisando e escrevendo o que ouvia e observava, mas depois de sua morte, em 1886, seu trabalho e seu nome caíram no esquecimento.

Os manuscritos de Von Schönwerth estão no Arquivo Histórico de Regensburg. Um acervo gigantesco que, aliás, nem sequer foi lido por completo – a Universidade de Regenburg é responsável por esse difícil trabalho.

Imagem: goodreads

Mesmo assim, volta e meia algum pesquisador dá de cara com um tesouro. Como Erika Eichenseer, curadora de cultura da região de Oberpfalz, que pesquisando os manuscritos achou os tais 500 contos de fada inéditos.

O material recolhido pelo folclorista é onde se pode ver a universalidade da qual Trummer fala. Inúmeros contos começam com o clássico “era uma vez…”. Outros são versões diferentes de contos de fada conhecidos, como João e Maria e Cinderela.

Trummer tenta explicar: “Ele ficou talvez aprisionado na regionalidade. Suas grandes obras têm no título o nome da região da Oberpfalz. Possivelmente deve ter surgido um preconceito geral, achando que ele era relevante só para essa região”.

Outra razão, talvez ainda mais importante, nas palavras de Trummer: “Von Schönwerth não editou suas histórias ou seus contos de fadas como os irmãos Grimm. Os Grimm tinham o ímpeto político de ajudar na formação de uma identidade alemã na época e, por isso, cortaram partes eróticas, noções de tempo e lugar, costumes locais. Eles fizeram uma grande edição dos textos, pois queriam transformar histórias populares em contos literários”.

Dura realidade

Os contos coletados por Von Schönwerth não tratam apenas de príncipes e princesas e nem sempre têm um final feliz. Falam de ofensas e crimes contra a natureza, de vagabundos astutos que tentam sempre levar vantagem, de animais, frequentemente protagonistas de histórias mágicas.

Há também farsas engraçadas, nas quais dá para ter uma perfeita ideia da situação em que eram contadas. Von Schönwerth agia como um cientista. Simplesmente reproduzia os contos tal como os escutava, sem mexer e editar os relatos.

“Os contos de fada de Von Schönwerth têm um frescor maior. Não são tão artificiais como os dos irmãos Grimm”, afirma a pesquisadora Erika Eichenseer.

Originalmente, contos de fadas não eram apenas histórias infantis. Na Idade Média, não havia distinção entre crianças, adolescentes e adultos – todos dividiam o mesmo espaço, inclusive aquele dedicado a contar e ouvir histórias.

A função dos contos, de acordo com o professor brasileiro Edmílson Martins Rodrigues, era unir a comunidade e transmitir valores (mas não a moral da história): não se desvie do caminho, obedeça os mais velhos, não dê atenção a estranhos.

O mundo dos contos de fadas só mudou no século 18, quando começa a existir a distinção entre a infância e a idade adulta – quem se vale disso são escritores como Charles Perrault,Hans ChristianAndersen e, claro, os irmãos Grimm, que não têm pudor em adaptar as histórias ao gosto popular.

O trabalho na Universidade de Regensburg pode ajudar a trazer novas luzes para um tempo quase esquecido, que repousa nos manuscritos de Von Schönwerth.

Conteúdo: aventurasnahistoria.uol.com.br

Conto de Natal, Clarissa Pínkola Estés — 21 de dezembro de 2020

Conto de Natal, Clarissa Pínkola Estés

Era uma vez, há muito, muito tempo, na época em que os bichos ainda falavam e os humanos conseguiam entender a língua dos animais, um pinheirinho que, embora pequeno em estatura, era imenso em espírito.

Ele vivia nas profundezas de uma floresta cercado de árvores muito majestosas e mais antigas do que qualquer árvore jamais conhecida até então.

A cada inverno, pais, mães e seus filhos penetravam na floresta em velhos trenós de madeira. Com muita felicidade e animação, eles cortavam algumas das árvores de tamanho médio e as levavam embora. Os cavalos veneráveis que puxavam os trenós resfolegavam, e os sinos nos seus arreios retiniam. O riso da crianças e dos adultos ecoava pelo bosque inteiro.

Ah, sim, o pinheirinho ouvira sussurros entre as árvores mais velhas, as que eram altas demais e grandes demais para serem derrubadas pelo machado e arrastadas dali – é, ele ouvira a história de que as árvores cortadas eram levadas para um lugar maravilhoso, chamado casa.

Ali, eram tratadas com o máximo respeito, afagadas por muitas mãos e postas numa água que lhes aplacava a dor. Depois, ao que se dizia, uma família inteira de pessoas sorridentes se reunia ao seu redor. Elas enfeitavam a árvore com objetos pequenos e lindos: pequenos globos feitos de fita com amêndoas dentro, doces e outras guloseimas. Velinhas esplêndidas eram acesas e colocadas nos galhos e ramos da árvore. Finalmente, decorada com balas, guirlandas de frutas e às vezes até enfeites de vidro e minúsculos espelhos coloridos, a árvore se tornava o convidado mais  reverenciado da casa. Era de fato uma das glórias mais magníficas que se poderia um dia conceder a uma árvore.

Entre as árvores mais velhas que conheciam esses assuntos, dizia-se que essa era, para os humanos envolvidos uma época de enorme alegria, pois lindas criancinhas vinham cantar, o fogo ardia em cada lareira e mesmo as estrelas no céu pareciam brilhar ainda mais.

De acordo com a descrição das mais velhas, em toda a parte moças e rapazes podiam ser vistos apressando-se e carregando para o salão o alimento que tivessem para compartilhar com todos. As velhas usavam seus melhores aventais brancos. Os velhos, seus melhores ternos e chapéus pretos. E todas as mulheres usavam seus melhores vestidos pretos. Todos os meninos usavam calças que sempre davam coceira, e as meninas, saias perfeitas para ensaiar mesuras. Ah, tudo aquilo parecia perfeitamente maravilhoso. E era com isso que o pinheirinho sonhava.

Ano após ano, ele esperava que o verão passasse, que o outono chegasse e afinal viesse a beleza do inverno. Quando sentia o frio cortante dos ventos, se alegrava. Ficava então felicíssimo no seu belo manto verde que se enchia mais e mais a cada ano que passava. E, também, a cada ano, no inverno, os trenós vinham e cortavam as árvores novamente, enquanto as crianças brincavam e faziam bonecos de neve com formato de anjo nos grandes montes acumulados pelo vento.

Apesar de o pinheirinho ser tímido, ele não conseguia se conter e a cada ano gritava com mais atrevimento: ” Venham me escolher! Olhem para mim! Adoro crianças. Adoro essa comemoração fabulosa. Olhem para mim! Por favor! Venham me escolher!” Ano após ano, porém, ninguém o escolhia. Logo muitas árvores  haviam sido retiradas da floresta ao seu redor. Agora o parente mais próximo estava a uma boa distância, e o pinheirinho estava bastante só, mas também em pleno sol e assim ele foi crescendo, crescendo, até ficar muito mais alto do que antes.

Absinto: 2011
Imagem: absinto

No inverno seguinte, voltaram os cavalos puxando um trenós com o pai, a mãe e crianças risonhas. Os cavalos empertigados passaram direto pelo pinheirinho, pois o pai estava avaliando um denso aglomerado de árvores mais ao longe. “Espere”, gritou uma das crianças, “aquele ali atrás, aquele sozinho.” E o pinheirinho começou a tremer de esperança.

“Ah, isso mesmo! Cheguem mais perto! Olhem para ima! Por favor! Venham me escolher!” O pinheirinho se esforçava para ficar mais reto e mais alto. E a família deve ter ouvido o que dizia, pois o trenó parou, os cavalos deram meia-volta e logo a família estava abrindo caminho na neve espessa para examinar a árvore.

“Ah, olhem como os galhos são cheio de vida”, exclamou uma criança que tinhas as bochechas perfeitamente rosadas. “Ah, vejam como essa árvore está verde e vigorosa”, disse a mãe. “É”, respondeu o pai, “essa aqui não parece nem alta, nem baixa demais, está perfeita para nós.

“E o pai apanhou seu machado no trenó. Com o primeiro golpe, o pinheiro sentiu a maior dor de toda a sua vida. ” Ai”, gritou a árvore, “vou cair”. E nesse exato momento , ele desmaiou. O machado continuou os golpes até que a árvore fosse separada da sua raiz, derramando grande quantidade de neve ao tombar.

Muito mais tarde, o pinheiro voltou a si no reboque que vinha dançando atrás do trenó. Tilintavam os sininhos nos arreios dos cavalos, e o pinheiro ouvia a conversa e o riso das pessoas. A dor mais terrível parecia estar passando agora; além disso, ele tinha uma vaga lembrança de que estavam indo a alguma parte, a algum lugar importante, lindo e maravilhoso, a um lugar que ele havia desejado ver todos os dias e todos os anos da sua vida passada.

Afinal, quando ia escurecendo, o trenó com a família e a árvore no reboque estacionou diante de um chalé coberto de neve. Um velho e uma velha saíram pela neve adentro e se aproximaram do reboque, exclamando? “Que árvore linda, linda, tão alta e tão cheia. Do tamanho exato. Perfeita.

“Ah”, pensou o pinheiro, “como é bom ser bem-vindo. Eu me pergunto se este não é o lugar aonde alguns dos meus vieram ao longo dos anos. Ah, espero voltar a vê-los em breve”. Os velhos o tiraram do reboque com mãos cuidadosas. Eles o admiraram, o afagaram, virando-o de um lado e do outro. Mergulharam o tronco cortado de árvore num balde de água fresca que aliviou grande parte de sua dor.

E quando apagaram os lampiões, o pinheiro, que amava a profunda escuridão da floresta, começou a amara também a escuridão daquela casa. Apesar de estar acostumado a ver o céu noturno inteiro, cheio de estrelas, e agora só enxergar um pedacinho de céu através de uma pequena vidraça na janela, havia uma estrela que cintilava mais do que as outras. Ao vê-la, o pinheiro pressentiu a promessa de que muito ainda estava por acontecer.

Com estes pensamentos, ele, como o restante da casa, logo adormeceu num sono profundo e feliz.

Bem cedo na manhã do dia seguinte, houve muito barulho e rebuliço com todo mundo se cumprimentando, se queixando e tagarelando. Alguém estava tirando a poeira do balde de aparas de lenha para enchê-lo ruidosamente. Os cachorros entraram latindo de alegria, seguidos pela crianças, depois a mãe e o pai, os mais velhos e também outras crianças e amigos, todos trazendo muitas caixas. A árvore esperava, literalmente prendendo a respiração de tanta emoção. As pessoas tiraram as tampas das caixas, e dentro delas havia enfeites de todos os formatos e tamanhos, feitos de vidro finíssimo. Havia guirlandas de frutinhas e velas com pequenos papeis coloridos em copinhos de vidro.Em toda a sua volta, a árvore foi adornada e enfeitada com esses objetos. E depois, que maravilha! Dezenas de velas foram acesas, uma após a outra,e arrumadas em círculos e espirais até os galhos mais altos, deixando o pinheiro em glórias absoluta.”Ah, isso é tudo o que os mais velhos lá na floresta descreviam, e muito mais”, exclamou o pinheiro. Ele fez um esforço enorme para esticar ainda mais os seus galhos enquanto procurava ficar o mais bonito possível. as crianças gritavam e corriam ao redor, enquanto outros tocavam e cantavam; ah, que alegria, especialmente quando uma linda criança, erguida pelo avô, colocou uma estrela de papel no ponteiro bem no alto da árvore.

Naquela noite, depois que as crianças dormiram e o pinheiro cochilava, enquanto o brilho da grande estrela entrava pelas janelas, os mais velhos entraram furtivos na sala com presentes embrulhados em papel pardo liso e bonito, enfeitado com retalhos de pano que eles haviam unido com uma linha colorida de bordar. No consolo da lareira, puseram cavalinhos, porquinhos, patinhos e vaquinhas feitos de maçãs e laranjas, com gravetos enfiados no lugar das pernas, e olhos e focinhos esculpidos de modo a parecer que estavam sorrindo. E todos foram feitos com mãos cheias daquele tipo de amor que deseja surpreender e agradas as criancinhas.Pela manhã, a árvore acordou sobressaltada quando as crianças entraram correndo, gritando e exclamando: “Ah, olhem como a árvore está linda, e os presentes ali embaixo”. E elas abriram os embrulhos e exibiam belas bonecas de trapos com densas cabeleiras castanhas de lã e vestidos de crochê, feitos a mão. Em seguida, desembrulharam carroças feitas de restos de madeira com rodinhas que giravam de verdade.Elas arrancaram as castanhas do pinheiro, e a árvore farfalhava os galhos, feliz por participar de tudo com que havia sonhado e muito mais.

Mais tarde, as crianças tiravam uma soneca no tapete e os adultos também cochilavam. Até mesmo os cães e os gatos estavam adormecidos, a sonhar. E o pinheiro refletia sobre seu destino incrível e sobre todos os acontecimentos do dia. Estava felicíssimo.

Naquela noite, quando todos estavam na cama e roncando baixinho – o cão e o gato, assim: zzzzzz; as crianças, assim: zzzzzzz: a mãe, o pai e os mais velhos, assim: ZZZZZZ – a árvore dormia profundamente e sonhava dom sua nova vida.

No dia seguinte e no outro, a árvore continuou orgulhosa na sala, embora estivesse um pouco desarrumada por ter todas as fitas arrancadas e porque sua estrela estava meio caída sobre um dos seus olhos. Apesar disto, tudo estava uma glória mesmo quando o pinheiro viu que a maioria das crianças e dos adultos subia nos trenós e ia embora. “Ora, estarão de volta hoje à noite”, pensou o pinheiro, ” e então vão mais uma vez pôr meu tronco machucado numa água fresca e nova. Vão me decorar de novo e a festa vai recomeçar”.

O pai entrou então, com passos pesados, e tirou todos os enfeites do pinheiro, guardando-os em caixas com camadas de enchimento de algodão. Depois, tirou a árvore da água e a sacudiu com tanta força que qualquer outra coisa que pudesse estar escondida nos galhos cairia ao chão. ele deixou as guirlandas de frutinhas secas na árvore e a arrastou da sala.

O pinheiro apesar de surpreso com este tratamento grosseiro, ainda estava esperançoso.” Ah, eu me pergunto para que sala iremos agora.” Ele imaginou todo o processo jubiloso da decoração, das crianças dançando e de todos cantando, e suspirou ao pensar nisso tudo.

O pai, no entanto, arrastou de maneira descuidada o pinheiro pela escada de madeira acima, que não parava de subir e cujos degraus iam se estreitando cada vez mais quanto mais eles subiam. E afinal, no patamar mais alto, o pai abriu uma pequena porta e, sem-cerimônia, jogou a árvore lá dentro. A árvore exclamou alarmada no que lhe pareceu um grande grito: ” Que tipo de escuridão é esta?” Mas a verdade é que ninguém pareceu ouvir, pois o pai fechou a porta e desceu de volta pela escada.

Nesse quartinho frio no sótão, não havia luz a não ser por uma janelinha embaçada na lateral do telhado, através da qual brilhava aquela estrela enorme.

“Ai, pobre de mim”, pensou o pinheiro tateando todos os galhos para ver se havia alguma fratura. “o que eu fia para ser abandonado num lugar tão frio e solitário?”Mas ninguém ouviu. E ali o pinheiro ficou muitos dias e muitas noites.

Certa noite, porém, com o canto do olho, o pinheiro viu quatro pontos vermelhos reluzentes. Eram os olhos de dois ratinhos minúsculos que ocupavam as paredes do sótão. “Ah”, disse-lhes em voz baixa, “ah, minhas senhoras, sabem me dizer quando virão me buscar, quando voltarei para a sala especial?” O camundongo de macacão e cachecol começou a rir e a gaguejar: “V-v-v-vir para levar você de volta para a sala especial? Ha, ha, ha.”Mas o outro camundongo, de vestido e avental branco, cutucou o companheiro e falou com a árvore com gentileza: “Querida árvore, ora, você teve uma vida boa, não teve?”

“Tive”, concordou a árvore, com tristeza.

“Ah, sei que você sentia ter nascido para essa vida, tanto que não desejava que ela mudasse. Mas…” , e nesse ponto ela afagou a árvore, “todas as coisas boas, árvore querida, mesmo as coisas boas, têm seu fim.”

“Essa época precisa terminar?” Indagou o pinheiro.

“Sim”, respondeu o camundongo, erguendo a mão e acariciando-a novamente. “Essa época já terminou. Mas agora começa um tempo diferente. Uma nova vida, um tipo de vida diferente sempre se segue à antiga. Você vai ver.” E os dois camundongos fizeram companhia à arvore a noite inteira. Contaram histórias e cantaram todas as músicas que conheciam. O pinheiro perguntou se os camundongos não gostariam de subir nos seus galhos para se aquecer, e eles disseram que sim, muito obrigado, e subiram. Juntos eles dormiram durante a noite escura com a grande estrela lá fora se aproximando cada vez mais da janela, quase como se soubesse de seus destinos e, com pena, lançasse sua luz ainda mias sobre eles.

Pela manhã, o pinheiro e os camundongos foram despertados abruptamente pelo ruído de passos pesados na escada, e o casal de camundongos saltou dos galhos do pinheiro. “Adeus, querido amigo. Lembre-se de nós como nós nos lembraremos de você e da sua bondade.” E os camundongos correram para a fresta na parede.

A porta do sótão foi aberta com violência, e o pai, usando um gorro de lã e um sobretudo, agarrou o pinheiro e o arrastou pela longa escada abaixo, pela porta, até o quintal. Ali, deitou o pinheiro num toco velho e ergueu muito alto um machado enorme, que caiu com o mais terrível dos pesos, provocando os ruídos mais medonhos de madeira dilacerada. Com o primeiro golpe, a árvore achou que ia morrer com a dor, e antes do segundo já estava inconsciente.

Muito tempo depois, o pinheiro acordou novamente no canto da sala especial e, embora não se sentisse muito bem, parecia que lhe faltavam apenas sua copa verde e que seus braços estavam arrumados de um modo totalmente diferente, em pedaços. No entanto, viu, nas poltronas diante da lareira, o velho casal que conhecera quando chegou à casa, vindo da floresta. Eram eles que haviam banhado seu ferimento com água fresca. Ali estavam eles, bem juntinhos diante do fogo. Apesar do seu estado, o pinheiro sorriu com o amor que via entre os dois. O velho levantou-se e jogou um dos braços do pinheiro no fogo. Embora de início o pinheiro resistisse e protestasse, logo compreendeu, enquanto a chama queimava cada vez mais fundo no seu coração, que aquela era sua alegre missão no mundo – dar calor para pessoas como essas. Ah, ser aquecido de dentro para fora pelo amor, e de fora para dentro pelo amor de alguém como ele. O pinheiro ardeu então com uma força ainda maior. “Ah, nunca pensei que pudesse queimar com tanto brilho, que pudesse encher uma sala com tanto calor. Amo esse velhos com todo o meu coração.” O pinheiro e todos os nós na sua madeira – e no seu cerne – explodiam de alegria nas chamas. Noite após noite, o pinheiro permitia essa entrega. Era tão completa sua alegria por ser útil e ter vida que ele queimou e queimou até não restar mais nada dele, a não ser as cinzas que jaziam no fundo da lareira.

Quando estava sendo varrido da lareira pelo velhos, pensou que sua vida fora gloriosa, mais do que esperara, só que agora a nada poderia aspirar.

O casal de velhos era muito cuidadoso e, com suas mãos velhas e sábias, varreu delicadamente cada fragmento de cinzas da lareira. Puseram as cinzas num saco macio e muito usado e o guardaram até a chegada da primavera.

Quando a terra começou a se aquecer, o velho e a velha trouxeram para fora da casa o saco de cinzas, entraram pelos jardins e espalharam cuidadosamente as cinzas do pinheiro por todas as videiras e também por todas as suas terras. Eles misturaram as cinzas do pinheiro ao solo. Com o tempo, quando as chuvas e o sol da primavera chegaram para ficar, as cinzas sentiram sinais de vida por baixo delas.

Aqui e acolá, por baixo, através e em volta das cinzas, surgiam minúsculos brotos verdes das entranhas do solo, e o pinheiro deu milhares de sorrisos e milhares de suspiros na sua felicidade por voltar a ser útil.

“Ai, eu não sabia que podia virar um monte de cinzas e ainda assim voltar a produzir tanta vida nova. Que sorte coube à minha vida. Cresci no isolamento da floresta. Mais tarde, que belos dias e noites de copos a tilintar, de luz de velas e cantorias eu vim a conhecer. Na minha época de solidão e carência, na mais escura das noites, tive a amizade de estranhos, como se fôssemos uma só família, ou até mais do que isso. Mesmo quando estava sendo dilacerado pelo fogo, descobri que podia emitir imensa luz e calor do meu próprio coração. Que sorte, como fui afortunado.”Ah”, suspirou o pinheiro, ” de tudo que cresce, cai e cresce novamente, é só o amor pela vida nova, e apenas ele, que dura para sempre. Agora estou em toda a parte. Está vendo como vou longe?”

Naquela noite, quando a grande estrela cruzava o céu noturno do universo, o pinheiro jazia sobre a terra abençoada, aninhando-se junto às raízes e sementes para aquecê-las com suas próprias cinzas, nutrindo para sempre todas as coisa que crescem; e essas, por sua vez, nutrindo outras, que por sua vez nutririam ainda outras, por todas as gerações futuras. Naquela lindíssima terra, da qual ele vinha e para a qual agora voltava, ele dormiu bem e teve sonhos profundos, cercado ali – como um dia estivera cercado antes no meio da floresta – por aquilo que é muito maior, mais majestoso e muito mais antigo do que jamais se conheceu.

Estés,Clarissa Pínkola, O Jardineiro que tinha fé: uma fábula sobre o que não pode morrer nunca – Rio de Janeiro,: Rocco, 1996

100 ANOS DE CLARICE LISPECTOR — 12 de dezembro de 2020

100 ANOS DE CLARICE LISPECTOR

Para celebrar seu aniversário de nascimento, escolhi um dos meus contos preferidos

#claricevivasempre

FESTA DE ANIVERSÁRIO – Clarice Lispector

A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados — e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata.Tendo Zilda — a filha com quem a aniversariante morava — disposto cadeiras unidas ao longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetês.

Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como Zilda — a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante — e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta.

E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos.

Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito “Happy Birthday!”, em outros “Feliz Aniversário!”  No centro havia disposto o enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a mesa.

E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado — sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.

De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o vôo da mosca em torno do bolo.

Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema.

Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria — que cheia das ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema — entraram enfim José e a família. E mal eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como se todos tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala — e inaugurando a festa.

Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava era posta á cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca.

 — Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha morrido. — Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública e como sinal imperceptível para todos.

Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial. Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde. Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo timidamente.

— Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era sócio de José. É um brotinho!, disse espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa.

A velha não se manifestava.

Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos — nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os presentes, amarga, irônica.

— Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa.

A velha não se manifestava.

Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo.

— Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios!

— Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento.

— Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe!

Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro — ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos.

E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam, enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito “89″. Mas ninguém elogiou a idéia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que fora por economia de velas — ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos, “vamos! todos de uma vez!” — e todos de repente começaram a cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português passaram a cantar bem baixo em inglês.

Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma lareira.

Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama com um único sopro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas à potência inesperada do menino que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com o dedo pronto no comutador do corredor – e acendeu a lâmpada.

— Viva mamãe!

— Viva vovó!

— Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.

—  Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett.

Bateram ainda algumas palmas ralas.

A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.

— Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! assegurou incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: — parta o bolo, vovó!

E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação , como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.

— Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.

— Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu, disse Zilda amarga.

Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha.

Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. As crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda.

E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado?

E por assim dizer a festa estava terminada. Cordélia olhava ausente para todos, sorria.

— Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante.

— Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos da cara.

— Hoje é dia da mãe! disse José.

Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar á luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão.

— Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela passada de vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. — Mamãe, que é isso! — disse baixo, angustiada. — A senhora nunca fez isso! — acrescentou alto para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma criança.

— Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos.

Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio.

Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos — provavelmente já além dos cinqüenta anos, que sei eu! — os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos — ainda mais fracos e mais azedos — haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não agüenta a mão, aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as orelhas cheias de brincos — nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.

— Me dá um copo de vinho! disse.

O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.

— Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha.

— Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. — Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho, Dorothy! — ordenou.

Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E olhavam impassíveis.

Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade.

Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera como não mexeu no copo. Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido.

Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olaria, que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma, não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para experimentar.

E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já incontroláveis
, gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores, já molhadas; a tarde cala rapidamente. E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também não responderam. Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranqüilidade da noite, as crianças começavam a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso.

— Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo.

A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão passado: a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas.

— Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas profundezas.

Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.

Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu — enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar.

Mas a esse novo olhar — a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa.

Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiu-o espantada.

— Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou José lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos.

— Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar graça.

— Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nós temos esse grande privilégio disse distraído enxugando a palma úmida das mãos.

Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso. Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta nessas horas — José enxugou a testa com o, lenço — como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, heróico, risonho.

E de repente veio a frase:

— Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando, assim, sem mais nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein?, repetiu com receio de não ser compreendido.

Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano.

— No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel, aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão.

Então ela abriu a boca e disse:

— Pois é.

Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritou-lhe emocionado, grato, com os olhos úmidos:

— No ano que vem nos veremos, mamãe!

— Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.

Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo.

As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas eram difíceis, escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras — pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranqüilidade fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio.

Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra a mais — que palavra? eles não sabiam propriamente, e olhavam-se sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.

— Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo, os cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou José eloqüente e grande, e sua altura parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua, pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito: “Pelo menos noventa anos”, pensou melancólica a nora de Ipanema. “Para completar uma data bonita”, pensou sonhadora.

Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério.


Clarice Lispector Extraído do livro Laços de Família, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998

Lagarto, seu simbolismo — 25 de novembro de 2020

Lagarto, seu simbolismo

Onde moro, muitos lagartos cruzam meu caminho e povoam meu entorno. Que bom entender os recados que eles trazem…

E entender um pouco mais sobre a função deles em alguns contos de fada.

“Bem, em diversos textos eu compartilho a percepção de que a natureza se comunica conosco de maneira muito sutil e se estivermos atentos o suficiente, recebemos as mensagens que contribuem com nosso caminhar, nessa jornada espiritual.”

A donzela sem mãos, Irmãos Grimm — 23 de novembro de 2020

A donzela sem mãos, Irmãos Grimm

Entendendo cada ciclo com uma tarefa a ser cumprida para o alcance da inteireza.

A DONZELA SEM MÃOS

Donzela sem mãos é um conto belíssimo que já foi amplamente estudado no livro Mulheres que correm com os Lobos, da autora Clarissa Pinkola Éstes, e no livro O Feminino nos contos de fadas, de Marie Louise Von Franz. 

O conto dos irmãos Grimm, trata da história de uma jovem que teve suas mãos amputadas pelo seu pai – um moleiro – que tristemente fez um pacto com o diabo, em troca de riqueza. 

Trata da jornada da mulher que não consegue assumir seus dons criativos. 

O pai, um moleiro que perde sua fortuna, é aquela parte nossa que quer sair da dificuldade por artifícios do ego e sem ética. Ele entrega a filha ao diabo. Vemos isso coletivamente no avanço tecnológico que destrói a natureza indiscriminadamente. Pensamos “é apenas um pedaço de terra”, ou é só uma árvore”, mas se trata mais do que isso. 

Cortar as mãos significa cortar relações. Mas ficar sem mãos também significa que a mulher ficou sem capacidade de atuar no mundo, de trabalhar e de colocar seus dons criativos no mundo. 

Quantas mulheres não abdicaram de seus dons e fizeram um pacto infeliz com “o diabo” não respeitando seus processos da alma, seus relacionamentos se tornando impotentes e incapazes de se relacionar e realizar qualquer produção criativa. 

Sem mãos, a jovem deixa a casa dos pais e segue em sua jornada redentora para viver na floresta e assim reencontrar a sua natureza perdida. Ela suporta o sofrimento e confia em algo maior que seu ego. 

Na floresta sente fome e encontra um jardim, que pertence a um rei. Lá é ajudada por um anjo para chegar ao jardim e comer uma pêra. O rei percebe que uma de suas peras sumiu e descobre a donzela, se apaixonando pela moça e a pedindo em casamento. 

A donzela sem maos - The girl without hands by ThaisMelo on DeviantArt

O jardim com o roubo fruto proibido lembra a temática judaico-cristã. Mas aqui não é considerado pecado. Aqui no conto simboliza o ultrapassar a inconsciência natural do paraíso. Isso significa que agora a jovem conhece o bem e o mal e a realidade da vida, que consiste de bons e maus momentos. 

Ao casar com o rei, ela ganha mãos de prata. O que ainda é uma solução temporária, pois com as mãos de prata ela ainda não tem a mesma mobilidade do que com as naturais, ou seja, ela ainda continua passiva. 

A prata na alquimia está associada a Lua, ao feminino e a maternidade. 

Isso significa que, apesar de estar em um caminho de redenção, ela ainda não tem um instinto materno saudável. É artificial. 

A jovem fica grávida, e o rei resolve ir para a guerra e a deixa com a sua mãe. Ao nascer o bebê a mãe do rei envia cartas ao filho, no entanto, as cartas são trocadas pelo diabo que manda matar a moça e o filho. 

Mais uma vez a jovem é colocada em contato com o mal, pois seu conflito não estava ainda resolvido. Sua feminilidade precisava ser aprofundada. 

A mãe do Rei percebe algo de errado e manda matar uma corça pedindo para que a jovem fosse embora para a floresta. 
Ela novamente se encontra na floresta, abandonada e traída. Não se trata de uma repetição do drama, mas um aprofundamento da iniciação da jovem para sua entrada na floresta da sua psique através do rito da resistência e assim fortalecer sua personalidade enquanto mulher, através desse encontro com a Mãe Natureza. 

Ela passa então, 7 anos com seu filho na floresta, auxiliada por uma espécie de anjo cuidador. Nesse tempo suas mãos crescem e seu marido passa a procurá-la durante todo esse tempo. 

Aqui o processo de iniciação da donzela se aprofunda. Ela agora vai sair de seu estado de inconsciência total do inicio do conto. A floresta é símbolo de algo intocado, da Mãe Natureza. Nesse prazo de 7 anos, ela resgata seu instinto materno, longe da civilização que lhe dita regras de comportamento enquanto mãe. 

Ela vai ser a mãe ursa e desenvolver sua natureza selvagem. Esse é um problema inclusive crônico em nossa sociedade ocidental: a perda de contato com a natureza afeta mais intensamente as mulheres, que desconectadas de seu próprio corpo e seus ciclos acabam se desligando do instinto materno e desconhecendo os ciclos de seus bebês. 

Ela fica na floresta por 7 anos. O sete é o número de dias de cada fase da lua e é também o número de outras expressões do tempo sagrado: os sete dias da criação, os sete dias da semana. 

O conto Donzela sem Mãos traz a mulher o aprendizado da natureza mais profunda do feminino que se divide em ciclos relacionados as mudanças do corpo. 

Portanto, compreendermos esses ciclos e os pactos infelizes que fazemos em nossa inconsciência nos auxilia em nosso crescimento psíquico. Cada ciclo tem sua tarefa, uma morte simbólica e uma entrada em nossa floresta interior, nossa área selvagem e intocada. Respeitar os ciclos de nosso corpo e espírito nos ajuda resgatar nossas mãos, ou seja, nosso poder de criar e realizar algo em nossas vidas e no mundo. 

Texto: Hellen Reis Mourão

Contéudo: Biblioteca Antroposófica

Imagem: Devintart

CONTOS MAIS FAMOSOS DOS IRMÃOS GRIMM REUNIDOS EM NOVA COLETÂNEA — 11 de outubro de 2020

CONTOS MAIS FAMOSOS DOS IRMÃOS GRIMM REUNIDOS EM NOVA COLETÂNEA

Retrato dos irmãos Grimm
Contos de fadas dos irmãos Grimm, ilustra criação folclórica da população alemã

VICTÓRIA GEARINI 

Mundialmente famosos por escreverem contos que representam a memória da criação folclórica da população alemã, os Irmãos Grimm se debruçaram com dedicação sobre a literatura oral alemã. A partir de histórias que escutavam de camponeses e amigos, os autores elaboraram narrativas que, até hoje, despertam curiosidade no imaginário popular. 

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Obra Contos de fadas dos irmãos Grimm (2019) / Crédito: Divulgação / Editora Principis

Com escritos produzidos desde o começo do século 19, os irmãos Grimm são conhecidos pela qualidade de seus contos. A partir de registros do cotidiano, os autores passaram a pesquisar documentos e arquivos que pudessem contar histórias da Alemanha, a fim de preservar tradições e crenças populares. 

Mais tarde, algumas de suas obras mais famosas foram adaptadas para livros e desenhos animados infantis pelo produtor cinematográfico Walt Disney e as produções são, até hoje, inspirações para outras adaptações literárias e cinematográficas. 

Lançada pela Editora Principis, em 2019, a obra Contos de fadas dos irmãos Grimm, traduzida por Thalita Uba, reúne contos memoráveis dos escritores: A Bela adormecida, Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Cinderela,  João e Maria, Rumpelstichen, entre outros. 

Disponível na Amazon em formato Kindle e capa comum, esta obra encontra-se em primeiro lugar entre as mais vendidas na categoria Ficção Infantil e Juvenil. Em suma, trata-se de uma obra fantástica que reúne os contos atemporais que marcaram o folclore da população alemã.

Confira abaixo um trecho de Contos de fadas dos irmãos Grimm

O Pássaro Dourado 

“Certo rei tinha um belo jardim, no qual havia uma árvore que dava maçãs douradas. As maçãs sempre eram contadas e, quando chegou a época em que começaram a madurar, notou-se que, a cada noite, uma desaparecia. O rei ficou muito zangado e ordenou que o jardineiro passasse a noite em vigília debaixo da macieira. Este mandou o filho mais velho cumprir a função; mas, por volta das doze horas, o rapaz pegou no sono e, pela manhã, outra maçã havia sumido. Então o segundo filho foi enviado para vigiar; e, à meia-noite, ele também adormeceu e, pela manhã, outra maçã havia sido levada. O terceiro filho se ofereceu para ficar de guarda; mas, a princípio, o jardineiro não quis permitir, por medo de que algo de mal lhe acontecesse. Depois, finalmente cedeu e o garoto se deitou debaixo da árvore para observar (…)” 

Conteúdo: Aventuras na História

Retrato dos irmãos Grimm – Wikimedia Commons

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As verdadeiras origens deste famoso conto são muitas vezes pouco conhecidas– e por vezes perturbadoras.

SÁBADO, 26 DE SETEMBRO DE 2020

POR MANAL KHAN

Conteúdo: nationalgeographicbrasil

Em 1992, a versão de animação de Aladdin, da Disneychegou aos cinemas e o público apaixonou-se pelas aventuras de um órfão – o “diamante bruto” – que cruzou com um tapete voador, um gênio poderoso e uma princesa independente. O filme tornou-se um clássico, originando um musical na Broadway e um remake com atores reais. Mas quão fiel é o Aladdin do cinema à história original?

Aladdin é apenas um dos 1001 contos


Aladdin é um conto com séculos de idade que faz parte de uma história maior chamada As Mil e Uma Noites. Nessa história, a heroína, Sherazade, é casada com um rei assassino que mata as suas esposas um dia depois de se casar com elas. Para salvar a sua própria vida, Sherazade conta uma nova história todas as noites (Aladdin é uma de muitas) ao seu marido, mas nunca chega ao final, prometendo terminá-las mais tarde. Noite após noite, a curiosidade obriga o rei a retardar a morte de Sherazade, para descobrir o que acontece a seguir. Alguns dos contos mais famosos não são apenas Aladdin, mas também de Sinbad, O Marinheiro e Ali Baba.

Sherazade cativa o seu marido com histórias de embalar, em As Mil e Uma Noites.

Sherazade cativa o seu marido com histórias de embalar, em As Mil e Uma Noites.

FOTO DE ILLUSTRATION BY LEBRECHT MUSIC & ARTS, ALAMY

As Mil e Uma Noites não vêm apenas da Arábia


Datando até o século 5, estes contos têm origem nas culturas norte-africana, árabe, turca, persa, indiana e do leste asiático. No ano 947, o historiador árabe Al-Masudi descreve, por exemplo, uma grande coleção de mil contos de todo o mundo antigo que em persa se chama Hazar Afsana (Mil Histórias). As histórias circularam durante séculos, com novos contos populares e interpretações adicionadas ao longo dos anos.

Em 1712, o estudioso francês Antoine Galland traduziu uma versão árabe dos contos para francês. Galland acrescentou várias histórias novas que lhe foram contadas por um sírio, chamado Ḥanna Diyab, de Alepo; Aladdin e a Lâmpada Mágica foi um deles.

Aladdin não é de Agrabah


No texto de Galland e na popular tradução inglesa de 1885 de Richard Burton, Aladdin vive “numa cidade na China”. As ilustrações dos contos da era vitoriana retratam a história e as suas personagens como sendo chineses. O cenário e a etnia das personagens começou a mudar para a Arábia e Oriente Médio quando a história foi contada no início do século 20.

Aladdin vive com a sua mãe


Ao contrário dos filmes da Disney, nas Mil e Uma Noites Aladdin não é um órfão que vive na rua. O seu pai, um alfaiate, faleceu, mas a sua mãe, uma viúva pobre, ainda está viva. A mãe de Aladdin é quem primeiro esfrega a lâmpada e liberta o gênio.

Aladdin não é um “diamante bruto”


Na versão da Disney, Aladdin é inteligente, engenhoso e leal, mas é subestimado porque é pobre. Segundo Richard Burton, o “herói” é superficial, preguiçoso, ganancioso e facilmente absorvido por demonstrações de riqueza. O seu pai morre porque o filho se recusa a aprender um ofício.

O ator Robin Williams emprestou sua voz para o gênio na icônica animação de Aladdin em 1992.FOTO DE COURTESY AF SRCHIVE, ALAMY

Não existe um, mas sim dois gênios


Aladdin usa dois poderosos gênios nas Mil e Uma Noites. Um vive numa lâmpada mágica e o outro num anel mágico. Ambos os espíritos ajudam Aladdin em pontos diferentes da história, concedendo-lhe desejos e auxiliando-o a escapar de situações complicadas.

Existem três vilões

Aladdin da Disney enfrenta o terrível vizir Jafar, mas, no texto original, existem três vilões. O primeiro é um mago maléfico da África que se apresenta como o tio há muito perdido de Aladdin, para convencer o rapaz a recuperar a lâmpada. O segundo é irmão do mago, e é ainda mais aterrador. O terceiro é o filho do vizir, rival de Aladdin por também gostar da princesa.

A princesa já está noiva quando Aladdin a conhece

Original Oil On Canvas Artist Signed “Princess Scherazade” Portrait Lady Woman


Depois de vislumbrar o rosto da filha do sultão, chamada Badr al-Budur (e não Jasmine), Aladdin a persegue, esbanjando ofertas ao seu pai. O sultão aceita os seus dotes, mas casa a filha com filho do vizir.

Aladdin usa o gênio para raptar o jovem recém-casado e prende-o numa cela escura e fria, durante duas noites, até que o jovem implora para o casamento ser anulado, e o sultão cede ao pedido.

Existem muito mais do que três desejos

Com o casamento de Badr al-Budur anulado, Aladdin começa a seduzi-la com vários desejos do gênio, dando a ela e ao sultão ouro, jóias, um palácio maravilhoso, criados, soldados e belos cavalos. Quando finalmente se casam, os desejos continuam, com tesouros e riquezas se acumulando.

Existe uma sequência

Como qualquer bom filme, a história de Aladdin também tem uma segunda parte – mais ou menos. Depois de Aladdin e Badr al-Budur matarem o terrível mago (através de uma combinação de sedução, veneno e esfaqueamento), começam a viver felizes para sempre na China, até que o irmão mais poderoso do homem morto vai à China para se vingar.